quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Mais três poemas

O Anjo e o Dragão - Trilogia





Canção Primeira - Na Noite Em Que Te Vi

De como o Dragão descobre o Anjo, e o que por ele há em seu coração.  Dividido entre a paixão e a fuga daquilo que sente, o Dragão perde-se na noite
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Na noite em que te vi,
toda a casa percorria mares
e, inquieta, a própria escuridão
sentiu fome daquilo que oculto
e roeu-me o peito
em busca do que não conhece.



Naquela noite, reneguei a poesia,
e caminhei trôpego por corredores
que me levam, cuidadosamente,
a lugar nenhum.


Procurei pelo milho e não o encontrei.
Vi claramente janelas abertas
para cegar-me;
mirei olhos de água pura,
senti entranhas onde quis amanhecer,
e que se fazem minhas,
para que eu jamais as possa possuir.


Na noite em que te vi,
quis gritar de dor pelo tesouro encontrado,
mas não consegui,
e uma pequena fada de asas negras
invadiu meu quarto
e afagou-me os cabelos para que eu dormisse.


Na noite em que te vi,
desejei fechar-me para a tua luz,
quis poupar de olhos inocentes
a visão inevitável do escândalo
e evitar minhas garras em tua pele luminosa.


Mas abriu-se sobre mim uma porta antiga,
e esticando em silêncio minhas asas,
sobrevoei perdido a cidade adormecida,
e procurei por ti, sem te encontrar.



Canção Segunda - Acordou-me Uma Canção Distante

De como o Anjo desaparece, em fuga do Dragão, e este é despertado por uma canção.  O vôo do Dragão em busca do Anjo, que o renega.  A prisão paralisante do Dragão. O redespertar e a busca. O Encontro.

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Acordou-me uma canção distante.
E me vi voando livre
sobre os campos largos do bom-senso e da sanidade.


Logo ultrapassei fronteiras.
E, perdido de tudo o que havia entendido,
cheguei a uma terra estranha
onde uma voz amada me cantava uma canção proscrita.

Eu não conhecia aquela voz,
mas meu coração sabia.
Era um anjo noturno, uma criança perdida
que pressentia meu vôo cego à sua procura.

Um poema que sempre amei.
Presente antigo, luminoso como a lua cheia.
Promessa do Espírito,
conhecida por meus dentes
e pela vocação do corpo.


Quando quis pousar,
uma sombra escura e fria a abraçou
e a levou de mim.
Alcancei junto à floresta o medo em forma luminosa,
irremediavelmente só e triste.
E ela me negou, e me fez perdê-la pela segunda vez.


Pousado sobre a catedral, silenciei.
E a memória de mil noites passadas
fez-me sabê-la em algum ponto da floresta
que eu não podia alcançar.


Renegado pela boca do anjo,
fiquei dele prisioneiro, e não pude me mover.


Foi numa noite imprevista
que novamente ouvi a canção.
Ela chegou a meus ouvidos ainda perdida,
como gritos,
e trouxe ao peito a opressão de um medo
que eu não conhecia.


Quando pude voar, dei com olhos de água pura
que miravam os meus.
Não como se perguntassem coisas,
nem como se quisessem entender meu vôo até ali.
Mas simplesmente entrando em mim
e devolvendo aquilo que me pertencia.


E então, como se conhecesse
cada um de meus gestos,
abriu minha promessa as suas próprias asas,
e fez-se maior do que eu a havia percebido.

A boca colou-se à minha, suavemente,
e prendeu-me a si,
confirmando a canção
que me havia despertado um dia.


Naquela noite amei-a intensamente.
E olhando a luz que nela me sorria,
conheci, enfim, a marca de meu vôo,
e cantei a canção que, antes, só ouvia.



Canção Derradeira - Em Pleno Vôo Um Frio Intenso


De como sutiliza-se o Anjo, sufoca-se o Dragão,  e ambos perdem-se um do outro, para sempre

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Em pleno vôo um frio intenso
acordou-me à noite de repente.


Senti morder-me o peito um eidolon furioso.
E a dor suave, mas profunda,
tinha o sabor inequívoco do beijo
que adormece sem consolo os enforcados.


Percebi à minha frente um anjo nu,
a pele luminosa despojada de encontros,
a alma aliviada na ausência de meu beijo,
o coração liberto do que ele acreditava
um sonho vão.


Vi então que lhe era amargo o meu presente.
Que, ao longo dos caminhos,
livrou-se o anjo aos poucos de uma historia,
e que as dores que eu sentia me invadirem lentamente
eram escamas deixadas ao acaso,
num caminho progressivo de silêncio e letargia.


Quando tentei tocá-lo,
tocaram o vazio as minhas garras.
E o coração do anjo era lugar nenhum,
onde habitavam distância, solidão e esquecimento.


Sufocado, gritei o nome desse anjo.
E ele, como que num gesto quase inexistente,
fez-me ver além de si,
como se ali não estivesse,
ou como se, lentamente, me perdesse.