terça-feira, 23 de fevereiro de 2016


 
Escritores convidados
 

Enfim começo um antigo projeto para o E por falar nisto.... Eu o chamei Escritores Convidados. Um espaço eventual, onde, de tempos em tempos, apresentarei outros escritores, poetas outros, artistas des lettres que conheci – de perto ou de longe – mas sempre atenciosamente, e me falaram direto ao Coração. É com vocês que desejo, então, compartilhar esses momentos de descoberta e fruição.
Começo com a doce Ishtar. Sob este pseudônimo, que celebra uma divindade pagã da fertilidade e da comunhão espiritual, está uma jovem escritora que, numa linguagem simbólica carregada de doce sensualidade e ternura,  fala de suas vivências de corpo e alma, para que, com ela, celebremos em nós mesmos a delícia de ser integralmente. A ferramenta dessa magia é a literatura, e o texto que vocês lerão agora – propositalmente dúbio entre o conto e a crônica literária – dá conta deliciosamente deste caminho.
 
marco antonio coutinho
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Era o terceiro dia de janeiro
 
   
                                                                                                                   

                                                                                                      Ishtar
 
Era o terceiro dia de janeiro, ano do vento, quando aconteceu. O beijo.
Eu não vou te beijar ele disse, enquanto segurava meu rosto com as duas mãos.
Eu não sabia o que esperar. Em uma das mãos tinha um copo de refrigerante. E, havia pouco, saia de uma lanchonete com aquele que com seu beijo me deu a chave para escapar da torre, do oceano onde eu estava afundando, sem conseguir respirar.
O beijo foi o primeiro suspiro, a cabeça pra fora da água.
  Estou viva! era o que dentro de minha mente gritava.  Mal sabia dos desafios que estavam por vir. Escapar da torre não foi fácil, mas os anos em que estive trancafiada dentro dela tiveram suas consequências. Nunca havia pisado naquela terra macia. Peguei-a com as mãos, experimentando as possibilidades. Antes só poderia imaginar a textura quando olhava de minha janela distante.
Era diferente, novo, e eu queria mais. Fui caminhando por aquela região, um bosque, repleto de diferentes formas de vida que nunca tinha tido a oportunidade de tocar, algumas que eu nunca nem imaginava que pudessem existir. Duas borboletas voavam em sua dança sensual, um duelo de movimentos no ar, em que entrelaçavam fios invisíveis da conexão entre elas. Mas eu conseguia enxergar. Pingava água daquela folha larga, verde, em formato de coração. 
Será que posso provar daquela fruta? eu pensava. Talvez beber água da fonte em que aquele gato do mato está bebendo seja mais inteligente.  Mas também havia lobos neste lugar encantado. Ninfas e fadas me observavam. Reconheciam uma irmã. No meu coração habitam duas, que também são uma só.
O tempo passa. Já aprendi que o sapo pode parecer gentil e me atrair com suas cores vibrantes, mas também me deixar doente se eu tocar na sua pele e provar da sua seiva.
Não, obrigada. Quem sabe outro dia?
Apenas um sorriso, um aceno gentil. Com a ninfa dos rios aprendi a evitar o perigo.
Mas ó, o sol sempre brilhou pra mim, na torre e na terra. A chuva já molhava meu rosto. Se o gosto é bom, por que não continuar? Por que na terra não posso caminhar descalça? Na verdade, eu posso, ou também usar as botas para evitar serpentes.
Então nadei no rio e o vi, e ele tinha olhos de serpente, mas  que me atraiam de maneira inexplicável. Uma das minhas ninfas gozou. A outra chorou.
Eu já estava na floresta fazia um tempo, o homem do rio perdeu o controle. Ou nunca teve.
Tudo ficou muito confuso, preciso sair daqui, mas já carrego as marcas. A cidadezinha que encontrei não é tão divertida. Prefiro correr com os gatos do mato e voar com as belas aves do paraíso. Mas eu consegui me estabelecer na cidade. Desisti de controlar as ninfas, agora eu as assumi. Elas estão mais contentes comigo.
Apareceu um homem numa árvore. Ele tinha asas e me chamou pra voar.
E eu fui.
 
 
 
 

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