Enfim começo um antigo projeto para o E por falar nisto.... Eu o chamei Escritores Convidados. Um
espaço eventual, onde, de tempos em tempos, apresentarei outros escritores,
poetas outros, artistas des lettres que
conheci – de perto ou de longe – mas sempre atenciosamente, e me falaram direto
ao Coração. É com vocês que desejo, então, compartilhar esses momentos de
descoberta e fruição.
Começo com a doce Ishtar.
Sob este pseudônimo, que celebra uma divindade pagã da fertilidade e da comunhão
espiritual, está uma jovem escritora que, numa linguagem simbólica carregada de
doce sensualidade e ternura, fala de suas
vivências de corpo e alma, para que, com ela, celebremos em nós mesmos a
delícia de ser integralmente. A ferramenta dessa magia é a literatura, e o texto
que vocês lerão agora – propositalmente dúbio entre o conto e a crônica
literária – dá conta deliciosamente deste caminho.
marco antonio coutinho
Era o terceiro dia de janeiro
Ishtar
Era o terceiro dia de janeiro, ano do vento, quando
aconteceu. O beijo.
— Eu não vou te beijar — ele
disse, enquanto segurava meu rosto com as duas mãos.
Eu não sabia o que esperar. Em uma das mãos tinha um copo
de refrigerante. E, havia pouco, saia de uma lanchonete com aquele que com seu
beijo me deu a chave para escapar da torre, do oceano onde eu estava afundando,
sem conseguir respirar.
O beijo foi o primeiro suspiro, a cabeça pra fora da água.
— Estou
viva! — era o
que dentro de minha mente gritava. Mal
sabia dos desafios que estavam por vir. Escapar da torre não foi fácil, mas os
anos em que estive trancafiada dentro dela tiveram suas consequências. Nunca
havia pisado naquela terra macia. Peguei-a com as mãos, experimentando as
possibilidades. Antes só poderia imaginar a textura quando olhava de minha
janela distante.
Era diferente, novo, e eu queria mais. Fui caminhando por
aquela região, um bosque, repleto de diferentes formas de vida que nunca tinha
tido a oportunidade de tocar, algumas que eu nunca nem imaginava que pudessem
existir. Duas borboletas voavam em sua dança sensual, um duelo de movimentos no
ar, em que entrelaçavam fios invisíveis da conexão entre elas. Mas eu conseguia
enxergar. Pingava água daquela folha larga, verde, em formato de coração.
— Será que posso provar daquela fruta? — eu
pensava. Talvez beber água da fonte em que aquele gato do mato está bebendo
seja mais inteligente. Mas também havia
lobos neste lugar encantado. Ninfas e fadas me observavam. Reconheciam uma
irmã. No meu coração habitam duas, que também são uma só.
O tempo passa. Já aprendi que o sapo pode parecer gentil e
me atrair com suas cores vibrantes, mas também me deixar doente se eu tocar na
sua pele e provar da sua seiva.
— Não, obrigada. Quem sabe outro dia?
Apenas um sorriso, um aceno gentil. Com a ninfa dos rios
aprendi a evitar o perigo.
Mas ó, o sol sempre brilhou pra mim, na torre e na terra. A
chuva já molhava meu rosto. Se o gosto é bom, por que não continuar? Por que na
terra não posso caminhar descalça? Na verdade, eu posso, ou também usar as
botas para evitar serpentes.
Então nadei no rio e o vi, e ele tinha olhos de serpente,
mas que me atraiam de maneira inexplicável. Uma das minhas ninfas gozou. A outra
chorou.
Eu já estava na floresta fazia um tempo, o homem do rio
perdeu o controle. Ou nunca teve.
Tudo ficou muito confuso, preciso sair daqui, mas já
carrego as marcas. A cidadezinha que encontrei não é tão divertida. Prefiro
correr com os gatos do mato e voar com as belas aves do paraíso. Mas eu
consegui me estabelecer na cidade. Desisti de controlar as ninfas, agora eu as
assumi. Elas estão mais contentes comigo.
Apareceu um homem numa árvore. Ele tinha asas e me chamou
pra voar.
E eu fui.
E eu fui.
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