quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Seja gentil, ou...


As reticências do título parecem uma ameaça, não é? Mas se eu explicar, possivelmente vai dar pra entender. A gentileza é, talvez, um dos maiores valores humanos, e a manifestação real de toda boa-vontade que podemos ter uns em relação aos outros. Talvez seja mesmo um valor espiritual. Vai além daquilo que se cumpre por obrigação, além do estritamente necessário. É um presente que damos de nós mesmos aos outros, inclusive àqueles que não conhecemos, ou que conhecemos muito pouco. Possivelmente em virtude disso mesmo, a gentileza é ave rara, coisa cada vez mais difícil de se encontrar. A gente pede, seja gentil, mas ninguém parece levar a sério. Tente achar um pouco de gentileza por aí. No Metrô, por exemplo.


Desagradável, às vezes, o Metrô, né não? A gente desembarca e vai pra escada rolante. Se estiver com pressa, babau! Aquele monte de gente, congestionando a tal escada mágica e supostamente rápida, não está nem aí pra sua pressa. Congelam em suas posições e azar o seu. E se você for subindo, tentando abrir caminho naquela massa auto-hipnotizada, corre o risco de acordá-los. E aí será olhado como um ser de outro planeta. E, pior, de um planeta inimigo! Como é que você não sabe que a escada dos apressados é aquela comum, que não se movimenta, que “não rola”? Escada rolante é pra gente ficar ali, paradão... E de preferência espalhado mesmo, barrando o caminho dos outros. Sem a gentileza de deixar espaço pra quem quiser subir por ela, caminhando. Quem mandou ter pressa?
O profeta Gentileza



“Tá com pressa, vai de táxi”, dizia-se, há algum tempo, a quem reclamava da lerdeza daquelas lacraias moto-mecânicas que o vulgo chama “ônibus”. Como praticamente não ando mais de buzum — ou é o Metrô mesmo, ou, paciência, táxi — não sei se a gracinha persevera na originalidade das piadinhas infelizes dos também infelizes e desiludidos passageiros. Mas o interessante da questão é o quanto o cidadão adora fazer pouco do próximo, mesmo quando sofre na carne o mesmo pouco caso e a mesma desconsideração que ele. Ou até por causa disto. Custava ser gentil?

Sim. Custava sim. Ser gentil não está mais entre as prioridades dos habitantes das grandes cidades. Nem mesmo nas do carioca — de nascimento ou adoção — que já foi considerado alegre, gentil e engraçado. Não é mais. Seja na escada rolante do Metrô (tá valendo também pra esteira rolante), seja no buzum, seja em qualquer aspecto da vida da cidade, é gentileza zero: o pouco caso e a grosseria são democráticos. Quer ver só?

Experimente observar aqueles artistas que ficam parados, no meio da rua, fingindo-se de estátua e atraindo o povaréu, que se encanta com aquela imobilidade aparentemente impossível para um ser vivo. As pessoas vão chegando, maravilhadas, e ficam ali, por longos momentos, embasbacadas com aquele fenômeno. Depois de satisfeitas, simplesmente vão-se embora, ignorando estrategicamente o recipiente (cumbuca, caixa ou chapéu) que está ali aos pés do artista, aguardando algumas moedas ou umas poucas notas.

Bem, depois de dar a sua contribuição (pelo menos você, seja gentil...) encaminhe-se à pracinha mais próxima, onde poderá ver, talvez, capoeiristas exibindo sua agilidade e beleza de movimentos, ou um artista tocando o seu instrumento e/ou cantando. Aqui no Rio, pelo menos há pouco tempo, não era incomum a gente ver também atores populares — no Largo da Carioca, por exemplo — com esquetes e tudo, dando um verdadeiro show de humor, e fazendo a gente — você, eu, o boy a caminho do banco, engravatados em geral, aposentados em trânsito, faxineiras, bacharéis, ciças e gabriéis — dar boas risadas e esquecer, por alguns instantes, os problemas tão insistentes, a maioria ainda sem resolução presumível.

Talvez você encontre esses admiráveis artistas também nas praças de sua cidade. Se encontrar, seja gentil. Aplauda e deixe a sua contribuição. Porque o mais provável é que a maioria das pessoas ali presentes, na maior má-fé, vai ignorar solenemente o fato de que, tanto o humano/estátua, quanto os capoeiristas, os atores, músicos e outros artistas, estão trabalhando, alegrando a gente, e que ninguém é obrigado a parar, para usufruir da arte alheia (que, pro artista, é trabalho!). E vão se mandar, concentradíssimos em suas vidas, em seu pouco dinheiro e em o quanto o mundo é injusto com eles. Bem-feito. Custava ser gentil?

É, custava mesmo. Se você passar depois pelo shopping mais próximo, poderá também experimentar aquelas pessoinhas sonolentas que trabalham em algumas das lojas, e que insistem em conceder à gente o dom da invisibilidade. E que quando nos vêem, aborrecem-se de ter de trabalhar. Uma dessas prebendas virou-se para uma de minhas maiores amigas — que, além de coroa, como eu, é de porte avantajado, gordinha — que procurava roupas bonitas para presentear uma magra e jovem sobrinha, e saiu-se com essa: “— Não temos nada para a senhora não...”. O que demonstra que a falta de gentileza pode andar de mãos dadas, namorandinho com a estupidez... E em geral anda...

Então, assim é a regra. Seja no Metrô (nos trens também tá valendo deixar de pé quem tem assento preferencial), seja junto aos artistas de rua, ou mesmo ao cidadão comum, que passa pela gente, ao cliente que entra na loja dos sonolentos, a gentileza não conta. Ser gentil significa atenção, conceder visibilidade ao outro, ter de pensar (talvez o maior de todos os obstáculos), sair da auto-hipnose, da robotização nossa de cada dia, significa ser gente de verdade. E se olharmos mais atentamente, veremos que gentileza é raridade também no ambiente de trabalho, nos serviços públicos, ou no meio da rua, no condomínio, na comunidade, em qualquer das esquinas da vida. “Gentileza gera gentileza”, já dizia o profeta de mesmo nome, que inspirou o Rio por tantos anos... Talvez não seja por acaso o fato de que, em geral — seja no estabelecimento comercial, na rua, ou mesmo na vida pessoal de quem não sabe ou não quer ser gentil — onde falta gentileza é exatamente onde sobram problemas. Ou, pelo menos, é aí que eles começam.

Gentileza? Como a escada reservada no Metrô aos apressados, gentileza “não rola”. Quem pode esperar boa-vontade alheia, quando não dedica um mínimo que seja de suas energias a ser gentil? Então, a gente continua pedindo, sugerindo, até implorando. Mas desta vez dá o troco e completa a frase do título: Seja gentil, ou... dane-se!
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13 comentários:

  1. Interessante seu post, e bem verdade mesmo. Mas eu não poderia deixar de observar que a gentileza também pode ser usada como poder. Poder de manipulação ou coerção.

    No caso da escada rolante, se você pedir licença com a maior "gentileza" do mundo todos irão até se sentir bem em lhe ceder passagem. Sei que isso não parece "gentileza" ao pé da letra, mas seja o que for o efeito que causa parece muito semelhante. No dicionário gentileza também significa "bom tratamento, amabilidade e delicadeza".

    Infelizmente, há aqueles que usam essa "gentileza" apenas para "usar" e coagir as pessoas a lhes servirem sem reclamar, às vezes até em coisas absurdas. É o caso de bandidos que enganam pessoas através da lábia -mas que nada seria sem a transbordante gentileza simulada. E também é o caso de canalhas que querem ganhar a mulher de todo jeito pra se aproveitarem delas, cheios de lábia e gentileza, para depois da exploração financeira ou sexual eles se revelarem uns monstros sem 1% daquela gentileza de dias ou horas ou minutos atrás. Em poucos minutos eles transformam uma santinha auto-declarada em uma vadia completa. E ela nem percebe a coerção, porque a gentileza parece dar sentido ou indulgência a qualquer mentira, e aí só se dá conta disso muito depois, quando volta pra realidade.

    O exemplo mais recente em que vi esse tipo de gentileza foi ontem, numa kombi lotada, quando uma mulher "avantajada" tentou sentar num banco onde já tinha 3 pessoas e a porta nem fechava. Geralmente a pessoa desiste quando isso acontece, mas o motorista não queria perder o dinheiro dela, então pediu com uma incrível gentileza para que quem já tivesse acomodado sentasse na ponta do banco e se espremesse durante umas 5 tentativas de fechar a porta. Por muito menos já vi gente reclamando explícitamente de situações dessas, mas a "gentileza" do motorista foi tanta que todos se sentiram incapazes de negar ou desistir.

    Pra quem tem boa lábia, o uso dessa gentileza lhe permite controlar mentes sem ser odiado, como um jedi. Todos ficam hipnotizados ou intimidados, pois ninguém tem coragem de recusar ou ser duro com quem lhe é tão gentil.

    Mas gentileza é só uma embalagem: Você nunca sabe se o conteúdo é aquilo mesmo e se faz o que supostamente fala. Por essas e outras que nem valorizo tanto a gentileza. Sinceridade, honestidade e jogo aberto me compram mais. Pois simular gentileza pra intimidar ou convencer uma pessoa é simples, mas simular situações e argumentos não é. Prefiro então contar meus motivos e argumentar logicamente quando preciso pedir algo do que simplesmente vestir uma máscara sorridente do V de Vingança pra ganhar a pessoa. Vejo a gentileza como um luxo questionável às vezes.

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  2. Oi, Leandro,

    Você tem razão. Qualquer coisa (não só a gentileza) pode ser utilizada de má-fé. Mas aí... Vamos deixar de ser gentis por causa disso? Além do mais, o fato de alguém fingir que está sendo gentil não significa que realmente esteja sendo. Fica na consciência de cada um...

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  3. /\ Falando em sorriso, olha ele aí! rsrs /\
    (brincadeirinha... rs)

    Marco,
    Concordo. Eu não renunciei a gentileza por causa disso. Mas é algo a ser questionado em certos momentos. Às vezes, se formos gentis com uma pessoa ela se aproveita pra nos manipular facilmente, preparando terreno ao nos corresponder com mais gentileza. Depois que o terreno está pronto ela nos explora, porque diante do carisma estabelecido fica difícil recusar ou se indignar. É como aquele ditado: "Vai oferecer a mão e pega o braço inteiro e o que mais deixar".

    Eu sou naturalmente muito gentil com desconhecidos. Mas assim como às vezes eu me dou bem por isso, tem vezes em que me dou mal.

    Ser gentil na selva é então muito complicado. A gentileza acaba sendo um luxo só para os amigos ou àqueles que queremos paparicar... É essa limitação e essa hipocrisia que me incomoda...

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  4. Pois é, Leandro. Onde há hipocrisia,não há realmente gentileza. Pode chamar de simulação, de simulacro, de suposta gentileza, de formalismo, o que for. Mas não é gentileza.
    Acho que você está tomando moleza, ou frouxidão, por gentileza. Sermos gentis não significa sermos fracos, ou otários. Até mesmo na luta - e falo aí em combate físico, porrada mesmo - pode-se ser gentil. Não sei se você chegou a ler "Relaxe e seja gentil", um outro artigo que eu já havia escrito, no ano passado, a respeito da gentileza, e publiquei aqui mesmo. Quando tiver tempo, dê uma olhadinha. É só ir em http://eporfalarnisto.blogspot.com/2009/09/relaxe-e-seja-gentil.html .
    Abração,
    Marco

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  5. Oi, Marco

    Infelizmente hj em dia vivemos num mundo onde gentileza está praticamente em extinção.
    Nos metros então, nem se fala! Ainda mais aqui em sampa, que dependendo do horário, se vc não cuidar cuidado é empurrado.
    Sobre os cariocas, que já foi considerado gente boa, também notei essa mudança.
    Impressionante como nós todos, em geral, estamos mais preocupados consigo mesmos, esquecendo que atitudes tão simples como educação fazem uma grande diferença na vida de todo mundo.
    Bjos
    Jade*)

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  6. E, no entanto, não estamos sozinhos sobre a terra. Na verdade, não teríamos como viver, nem como sobreviver, e nem mesmo como termos idéia de nós mesmos, como pessoas, sem não fossem os outros, se não fosse o mundo e os outros... E no entanto...

    Beijos, Jade, querida!
    Marco

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  7. Eu que morei no RJ, lembro, até hoje, da gentileza das pessoas no ônibus pra me indicar onde ficava a PUC, onde tive a felicidade de estudar. Como morei em muitos lugares no Rio, de lugar pra lugar, a gentileza mudava de acordo com o humor das pessoas que viviam em lugares diferentes e que tinham problemas tb diversos. Mas o alegre e feliz RJ da geração da minha mãe pra o Rio de hoje há muita diferença, enquanto o Rio dos anos 50 era um lugar onde as pessoas tinham muita satisfação de encontrar e falar na rua e onde a pressa ainda não existia e era coisa de gente perturbada, hoje quem tem tempo pra um papo descontraido na Cinelândia? O próprio carioca perdeu um pouco o seu gingado pra tentar sobreviver na urbes metropolitana. A situação chegou a tal ponto que lembro até hoje de um motorista nordestino de uma das linhas de copacabana que andava como uma bala, no dia que andava mais light só faltavam bater nele.

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  8. Isso aí, Aduad. Acho que ficamos todos amargos e com medo. Aquele bom-humor, aquela onda "gente boa" do carioca infelizmente não passou impune por isto...

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  9. Não existe gentileza entre aspas. Gentileza é gentileza. Algo que está caindo em desuso. Se eu sou gentil com alguém, e esse alguém tenta tirar proveito disso, é porque eu deixo. É sempre bom lembrar: as pessoas fazem com a gente, aquilo que nós permitimos. Gentileza sempre é bom. Exercite-a!!

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  10. Perfeito. Gentileza é principalmente ação. E exercicio...

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  11. O tema da gentileza é algo muito interessante de se observar. Muitos a confundem com firulas, frescuras, frouxidão ou pior dos pecados atuais perda de tempo. Penso que a nossa crescente brutalização, o salve-se quem puder em que vivemos tem por base uma também crescente incapacidade de enxergar o outro. E aí surge um outro viés ao tema, talvez não enxergamos mais o outro porque fomos perdendo a capacidade de enxergarmos a nós mesmos. Talvez um caminho para retornarmos a tempos mais gentis seja olhar para nós e buscarmos antes de mais nada sermos gentis conosco, e daí com a máxima do faça ao outro o que quer que te faça,talvez possamos construir uma sociedade melhor.

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  12. Renatinha, você tocou num dos nós mais consistentes da questão, quando escreveu "Penso que a nossa crescente brutalização (...)
    tem por base uma também crescente incapacidade de enxergar o outro. E aí(...) talvez não enxergamos mais o outro porque fomos perdendo a capacidade de enxergarmos a nós mesmos"
    A gente não consegue ver a nós mesmos, você tem toda a razão. Como veremos o outro? Por outro lado, ver o outro é também um ponto importante para que possamos perceber a nós mesmos, recortar a nossa individualidade. A nossa falta de percepção, tanto de nós mesmos, quando do outro é um forma de estarmos mortos, né não? Inteiramente, sem nem uma alminha pra contar a história...

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